quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Denuncia! Conservadorismo político em Fortaleza e o ataque machista e racista às mulheres


Por Cris Faustino[1]

A nova Câmara de Vereadores de Fortaleza escolheu como seu presidente, para os próximos dois anos, o Vereador Walter Cavalcante, vinculado ao movimento Provida, grupo político ultraconservador, com forte viés moralista e religioso e que tem como uma de suas principais mobilizadoras nacionais, Lenise Garcia, também membro do grupo religioso internacional Opus Dei.

Atualmente, uma das pautas desse movimento é incidir junto ao poder legislativo (em suas diferentes instâncias), sobre as propostas de reforma no Código Penal que sinalizam avanços na descriminalização da prática do aborto e na consequente ampliação das possibilidades de acesso das mulheres aos serviços de saúde, de acordo com suas necessidades, como é o caso dos serviços públicos para o abortamento seguro. A principal meta do Provida é manter perseguidas e sujeitas à prisão, as mulheres que praticam aborto, negando-lhes o acesso àquilo que realmente necessitam: os serviços de saúde pública e de qualidade. Por motivos óbvios essa meta do Provida atenta principalmente contra as mulheres pobres e negras.

O presidente da Câmara e os vereadores, em pleno processo de transição para os mandatos 2013-2016, elevaram a cidade de Fortaleza a ícone do moralismo, da misoginia e perseguição às mulheres, impondo às suas cidadãs e cidadãos não só um ataque ao direito de ter direitos reprodutivos, mas também aos direitos de acesso à informação e igualdade no debate sobre a temática do aborto. Trata-se da aprovação, em 18 de Dezembro de 2012, do Projeto de Lei 0223/2012 que institui a Marcha pela Vida contra o Aborto no calendário oficial de eventos do Município de Fortaleza.

Desconsiderando e sonegando do debate público os graves problemas que a criminalização do aborto tem gerado para mulheres e meninas, o atual Presidente da câmara, que é o autor do projeto, assim como os vereadores que votaram a seu favor, assumiram os princípios religiosos e moralistas como base da discussão, e as ideias de grupos religiosos como as mais prioritárias no que se refere aos direitos reprodutivos. Instituíram a fé religiosa como determinadora de um tema tão importante para a democracia brasileira, que é o básico direito das pessoas de decidirem sobre seu processo reprodutivo.

Ironicamente o projeto propõe que a tal Marcha que defende a violência contra as mulheres que abortam (porque hostilizar e aprisionar pessoas de bem é violência hedionda e, no caso, violência coletiva contra um grupo específico), ocorra no mês de novembro, quando a cidade de Fortaleza e os movimentos de lutas por igualdade comemoram, no Brasil inteiro, dois importantes símbolos do esforço de superação das injustiças: o 20 de Novembro da Consciência Negra e o 25 de Novembro de Luta pelo Fim da Violência Contra as Mulheres. Ambas as datas são momentos importantes para que as mulheres negras e pobres se manifestem contra as opressões de que foram vítimas históricas: do estupro colonial, à violência doméstica, à perseguição e aprisionamento por decidir sobre sua própria reprodução. Os parlamentares não poderiam ser mais infelizes em relação às lutas das mulheres, portanto.

Um legislador/a que minimamente se preocupa em fazer de seu mandato uma prática democrática tem a obrigação de buscar compreender em sua complexidade os assuntos sobre os quais decide, não podendo tratar as necessidades e interesses dos grupos vulnerabilizados como moeda de troca e promoção política. A democracia exige que a prática política do legislativo se baseie no diálogo com a pluralidade da sociedade civil para decidir com a devida atenção sobre o enfrentamento dos problemas de ordem pública, que não podem ser submetidos aos interesses de nenhum grupo religioso, já que a fé religiosa é uma escolha pessoal e individual e não pode ser imposta à cidade, ao estado ou ao país por meio das instituições públicas. A estas últimas, cabe tão somente garantir que todos os credos e crenças possam ser exercidos pacificamente pelos indivíduos e pelos diferentes grupos religiosos. Eis aí uma lição básica de laicidade, assunto sobre o qual reina a quase absoluta ignorância dos nossos legisladores/as, para nossa imensa vergonha intelectual.

No mundo inteiro, no Brasil e em Fortaleza diferentes movimentos de mulheres, inclusive religiosas, defendem o aborto como um direito humano. Mas os vereadores de Fortaleza, no apagar das luzes de 2012, passaram ao largo do debate e favoreceram ideias cuja aplicabilidade resulta, explicitamente, em negação de direitos. De forma alienada, camuflaram o fato de que as maiores vítimas do moralismo religioso que perpassa o tema do aborto e a sua consequente criminalização são as mulheres, em especial as empobrecidas pelas desigualdades de classe social e de gênero e pela predominância do racismo na sociedade e nas instituições. Agiram, pois, desde uma perspectiva elitista, patriarcal e racista.

Instituir a Marcha contra o aborto como um evento do calendário institucional municipal significa, também, que os parlamentares negam às mulheres organizadas a condição de sujeito político do debate sobre a questão do aborto em Fortaleza e promovem o retrocesso de nossa cidade ao século XIII quando o sujeito religioso se impunha frente à inexistência do sujeito de direito. Ao naturalizar as ideias e ideais do Movimento Provida em relação aos direitos reprodutivos como os únicos “corretos”, o projeto atenta contra a democracia e fere o direito à igualdade política no debate sobre a questão. Os grupos que negam às mulheres o direito de ter ou não ter filhos e manda trancafiar na cadeia as praticantes (pobres) do aborto são legitimados como interlocutores privilegiados pelo poder legislativo municipal, tornando-o conivente com as violações dos direitos humanos das mulheres a despeito de todos os avanços que os movimentos sociais lograram nos últimos anos em relação à questão. 

A criminalização do aborto é um dos mais graves problemas a ser enfrentado pela democracia brasileira. Primeiro porque a legislação vigente impõe às mulheres — que não podem parir em um determinado momento de sua vida e precisam interromper a gravidez — a clandestinidade, a ameaça de prisão, a vulnerabilidade a procedimentos inseguros, a exploração econômica, a hostilidade e os maus tratos nos serviços de saúde. Além disso, pelo fato da gravidez acontecer no corpo das mulheres, estas são as únicas atingidas, de fato, com a negação do direito ao aborto. Nota-se, pois, que a legislação que criminaliza o aborto, assim como os defensores dela, privilegia na vida real o outro sujeito da reprodução, os homens, sejam eles maridos, namorados, “ficantes”, abusadores ou estupradores. Nesse sentido, não se pode negar também o cunho explicitamente machista e misógino do PL 0223/2012. Infelizmente.

Mas não é só isso. Um dos maiores entraves no avanço dos direitos reprodutivos é a investida conservadora e reacionária sobre os processos políticos, onde a legítima demanda do direito se transforma, pela via do moralismo, em instrumento de pressão contra parlamentares e/ou candidatos, em moeda de troca no vai-e-vem dos interesses. É esse, por exemplo, o objetivo da campanha a Vida Depende de seu Voto, encabeçada pelo Provida. Esse processo faz com que os políticos ao invés de assumirem compromissos com os direitos das mulheres passem a fazer negociatas e a se submeterem à lógica ultraconservadora, reacionária, racista e machista, prejudicando enormemente o debate. É público e notório como os direitos reprodutivos são tratados nas campanhas políticas como fator de “desempate” das disputas. Frente à formação do senso comum, recheada com todas as heranças de dominação das mulheres, os políticos brasileiros, quase sempre preferem se omitir ou se posicionar de forma descomprometida com os reais problemas que enfrentamos com a criminalização do aborto.  Essa é uma das mais graves heranças patriarcais que nossos “modernos” políticos não superaram.

Do ponto de vista da racionalidade dos direitos e da autonomia das pessoas, a legalização do aborto é questão óbvia e simples de se entender: as mulheres não devem ser obrigadas a parir, e tem plena capacidade de decidir sobre isso! Mas a atitude da Câmara de Vereadores de Fortaleza demonstrou não só a desinformação e o desconhecimento do nosso legislativo em relação às questões que envolvem o tema, mas também o descaso com que os problemas que afetam as mulheres na vida real, independente de serem as eleitoras a favor, ou não, da legalização do aborto. Não cabe ao legislativo sancionar o senso comum que prejudica os direitos humanos, mas estabelecer processos que colaborem com a transformação cultural que promova a inclusão e o bem estar da população. É assim, por exemplo, no enfrentamento ao racismo e à homofobia, que embora se configurem como sérias violências são partes da cultura brasileira e nem por isso o Estado pode permitir ou se omitir de enfrentar, dado o seu papel de zelar pelo bem de todos e todas. Infelizmente a maior parte dos políticos não entenderam ainda que a criminalização do aborto, independente de qualquer fé religiosa, está fortemente vinculada à cultura patriarcal e machista que violenta e nega historicamente os direitos humanos das mulheres, principalmente das mais vulnerabilizadas.

A ex-prefeita Luiziane Lins, infelizmente não se posicionou institucionalmente em relação ao PL do Provida. Fica na mão do atual prefeito, Roberto Cláudio, a obrigação de zelar pela igualdade no debate sobre as decisões públicas que dizem respeito à questão do aborto. Vetar, ou não, o PL 0223/2012 será a primeira atitude do governo municipal que refletirá o seu nível de comprometimento com as cidadãs de Fortaleza. E a todos (Prefeito e a, não tão nova, Câmara de Vereadores) é sempre bom lembrar que o cotidiano das eleitoras é o cotidiano das mulheres, e que somos nós que abortamos. É legítima nossa organização em defesa de nossas vidas e necessidades. As mulheres já enfrentaram e superaram muitas opressões, essa é apenas mais uma.


[1] Assistente Social, membro da Equipe do Instituto Terramar; do Fórum Cearense de Mulheres, do Instituto Negra do Ceará, da Articulação de Mulheres Brasileiras; do GT Combate ao Racismo Ambiental da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, e Relatora Nacional do Direito Humano ao Meio Ambiente -Plataforma Dhesca Brasil. 

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